Narrativa consagrou personagens masculinos e apagou as mulheres do processo, dizem historiadoras
Maria Leopoldina, Maria Quitéria, Maria Felipa e Joana Angélica são algumas das figuras que participaram do processo de Independência do Brasil, em 1822, mas que foram apagadas da memória histórica durante décadas. A reabilitação destas e outras tantas personagens que contribuíram para emancipação do País passa por longo caminho de pesquisa e investigação, mas esbarra na falta de registros oficiais que omitiram as mulheres dos processos políticos e sociais da época, visto que os documentos e as histórias foram retratadas, em sua maioria, por homens.
O interesse por resgatar a participação feminina na independência surgiu com mais força em 1970 pelos movimentos feministas. “A história dos livros didáticos, até pouco tempo, era contada pelos vencedores, ou seja, pelos homens. Desta forma, durante muito tempo os relatos que envolviam mulheres ficaram esquecidos ou foram considerados sem importância. Após a década de 1970, e por forte influência dos coletivos feministas, é que essas histórias passaram a ser incluídas”, esclarece Silene Ferreira Claro, pós-doutora em história e professora visitante da UFABC (Universidade Federal do ABC).
O universo acadêmico também teve significativa contribuição para inclusão das mulheres na narrativa da independência, informa Cecília Helena de Salles Oliveira, professora de história da USP (Universidade de São Paulo) e do Museu Paulista. Segundo ela, historiadores que estudavam o período começaram a perceber que, devido à falta de materiais sobre o tema, eles tinham uma visão simplificada do assunto. Do contrário que se imaginava, a atuação política, econômica ou social não era restrita apenas as figuras que eram continuadamente reproduzidas nos documentos históricos.
PERSONAGENS CONSAGRADAS
Uma das figuras mais conhecidas e lembradas pela participação na independência é Maria Leopoldina da Áustria, arquiduquesa da Áustria, primeira mulher do imperador dom Pedro 1° e imperatriz Consorte do Brasil de 1822 até sua morte. Sobre sua participação, as historiadoras destacam que Maria Leopoldina possuía educação aprimorada, com conhecimentos em política, história, geografia, idiomas, entre outras áreas. Foi este conhecimento que possibilitou sua maior atuação e envolvimento no processo, do ponto de vista político e diplomático. Ao lado de outros diplomatas e conselheiros, ela contribuiu para decisão de permanência de dom Pedro 1° no Brasil e posteriormente da proclamação da República.
A jovem Maria Quitéria de Jesus foi outra personagem que ganhou destaque na história do País. Ela foi a primeira mulher a fazer parte do exército brasileiro e é considerada uma das heroínas da independência. Baiana, utilizou o nome do seu cunhado e precisou fingir ser um homem para poder entrar nas forças armadas, onde ficou conhecida como soldado Medeiros. Filha de fazendeiro, Maria Quitéria recebeu relativo destaque no batalhão devido a sua excelente montaria e seu manejo de armas – seu desempenho a manteve no exército mesmo quando sua identidade foi revelada.
Semanas após ingressar nas tropas, seu pai descobriu a história e exigiu a volta da filha para casa. No entanto, major Silva e Castro não permitiu sua saída, já que ela era importante para a luta contra os portugueses. Além de impedir sua saída, o comandante ainda deu um saiote para que seu uniforme se adequasse ao vestuário feminino. Após o fim da guerra, Maria Quitéria foi condecorada por dom Pedro 1° com o título de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro. “Mesmo que ela tenha sido aceita nas tropas militares, a visão misógina não foi desfeita e sua figura continuou sendo masculinizada”, complementa a professora da UFABC, Silene Ferreira.
Maria Felipa de Oliveira, baiana escravizada que foi liberta, é uma figura controversa da história do Brasil devido a falta de documentos históricos que atestem a sua existência ou até mesmo seus fatos. Além de marisqueira e capoeirista, Maria Felipa tinha excelente conhecimento sobre uso de ervas, tática que utilizou, na companhia de outras 40 mulheres, para atrair e dominar soldados portugueses. Além disso, também incendiou duas embarcações durante a operação.
A religiosa Joana Angélica de Jesus é considerada como mártir da Independência do Brasil. A professora do Museu Paulista, Cecília Helena de Salles Oliveira, destaca que a abadessa foi morta defendendo o Convento da Lapa, em Salvador, contra soldados portugueses que ameaçavam invadir o local. “Para proteger as pessoas que estavam abrigadas no convento, ela colocou-se à porta quando foi atacada e ferida. Esses ferimentos a levaram à morte no dia seguinte”, finaliza Cecília.
ATUAÇÃO DE OUTRAS MULHERES
“As pessoas acham que lutar é só pegar em arma. É uma das maneiras, mas não a única”, ressalta a professora de história Silene Ferreira Claro, que destaca ainda a atuação de outras mulheres em diferentes setores da sociedade na luta pela independência. A participação feminina pode ser encontrada nas áreas administrativas de capitanias hereditárias, redes de espionagem, panfletagem, comércio e produção de manifestos e publicações escritas – sob pseudônimo masculino.
Mulheres ainda lutam pela garantia de direitos
Mesmo com a importante atuação na colônia portuguesa e no processo para Independência do Brasil, as mulheres ainda lutam pela garantia dos seus direitos, assim como outras minorias, negros, indígenas, pessoas da comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer, Intersexo e Assexuais).
Segundo Silene Ferreira Claro, pós-doutora em história e professora visitante da UFABC (Universidade Federal do ABC), mesmo com a proclamação da República, o País manteve as mesmas estruturas políticas, econômicas e sociais.
“Isso revela uma continuade que, de certa forma, coloca o projeto de independência como incompleto, pois boa parcela da sociedade ainda não conquistou sua independência e reconhecimento na cidadania. O País de hoje ainda é misógino e machista”, defende.
A docente reforça a importância da revisão histórica para poder transformar a longo prazo a sociedade. “É preciso problematizar o passado para poder enxergar o presente e tentar mudar o futuro. Não existe única verdade absoluta sobre o que realmente aconteceu. São diferentes versões, com diferentes repertórios e olhares e todos contribuem significativamente para manter viva a memória histórica”, diz Silene.
Já Cecília Helena de Salles Oliveira, professora de história da USP (Universidade de São Paulo) e do Museu Paulista, afirma que o atual momento é de luta para expansão da cidadania e por outras formas de participação na sociedade. “No século XIX era impossível acontecer a independência para esses grupos por conta das condições históricas e políticas da época. O mesmo também ocorreu no século XX, mas talvez hoje seja possível, essa ampliação da garantia de direitos. O resgate histórico possibilita buscar elementos para mudar o que não aceitamos”, finaliza.
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