A pandemia, o ensino a distância e o futuro da EDUCAÇÃO

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Vanessa Soares

A pandemia, o ensino a distância e o futuro da EDUCAÇÃO
 
Professor de pedagogia e doutor e mestre em educação da USCS, Rodinei Pereira explica o que se pode esperar quando a rotina escolar voltar ao normal
 
isolamento provocado pelo novo coronavírus obrigou a nova realidade na educação. De uma hora para outra, professores e equipes pedagógicas se viram obrigados a repensar o jeito de ensinar, de forma que o aprendizado fosse o menos prejudicado possível. Para piorar o cenário, a situação já dura sete meses e a realidade do home schooling deverá seguir até o início do próximo ano letivo. Com isso, como fica o futuro da educação? O novo método aplicado de forma emergencial poderá ser adotado pelo menos parcialmente no cotidiano escolar? O professor de pedagogia e doutor e mestre em educação da USCS (Universidade Municipal de São Caetano), Rodinei Pereira, conversou com a Dia-a-Dia Revista e detalha o que se pode esperar para das escolas nos próximos anos.
 
O isolamento físico provocado pela pandemia do coronavírus obrigou outro momento na educação. O sr.  acredita que esse cenário abrirá caminhos para um novo jeito de ensinar?
 
Considerar que a pandemia provocará a emergência de novos jeitos de ensinar sem considerar a desigualdade abissal da sociedade brasileira é um risco. Basta pensarmos que tais desigualdades se agudizaram. Há estudantes e famílias que estão sem condições de acesso aos conteúdos escolares desde que o ensino remoto emergencial foi colocado em prática. E quando menciono “acessar as atividades” não me refiro apenas a ter acesso a sinal de internet e artefatos tecnológicos, mas também a disporem de capital cultural, de letramentos, de repertório, enfim, de condições para apoiar os estudantes na realização das tarefas escolares. Além disso, a docência é uma profissão que depende da mobilização de conhecimentos profissionais específicos. Portanto, precisamos nos perguntar o seguinte: as alternativas criadas para o ensino remoto atendem a todos? Se não atendem, não temos evidências de que podem ser generalizadas. Não obstante, as práticas de ensino deste momento pandêmico são denominadas de ensino remoto emergencial. Ou seja, não são de caráter regular, pois não são acessíveis a todos. Inclusive tenho visto muitos argumentos que defendem que a pandemia está pavimentando o caminho para um futuro de práticas de “ensino híbrido”. Essa ideia é precipitada. Só é uma ideia aceitável se elaborarmos e implementarmos políticas eticamente e politicamente comprometidas com a equidade social. Caso contrário, prefiro deixar uma pergunta para que toda a sociedade reflita: o ensino será híbrido para quem? Precisamos, ainda, considerar que o ser humano é relacional, e que as práticas educativas, sobretudo as formais, dependem das interações sociais vividas presencialmente, sobretudo quando pensamos em bebês, em crianças pequenas e estudantes que não são alfabetizados, por exemplo. Há determinadas intervenções pedagógicas que dependem da interação social e de mediações realizadas pelos professores, no momento em que elas ocorrem. Além disso, os estudantes aprendem entre si. E sem estar nos ambientes escolares, há um claro prejuízo nessas interações.
 
O que esperar?
 
Não podemos negar que essa dura experiência que estamos vivendo já vem deixando marcas, porque estamos lidando com a possibilidade do adoecimento e da morte, cotidianamente. Esse é o contexto das duras lições que temos aprendido. Para a educação, entre essas duras lições temos aprendido que o ensino presencial tem um valor inestimável; as interações sociais e afetivas não são substituíveis ou adaptáveis; a população mais vulnerável está pagando a conta mais alta da pandemia; sinal de internet e tecnologia são direitos aos quais todos precisam ter acesso; as políticas de formação docente precisam levar em consideração as necessidades formativas dos professores e as fases da carreira nas quais se encontram; as tecnologias digitais de informação e comunicação, enquanto ferramentas didáticas, podem ser incorporadas no trabalho docente e no trabalho das equipes gestoras das escolas, mas para isso é preciso investir na garantia de condições para que todos esses profissionais tenham acesso a equipamentos de boa qualidade, sinal de internet de boa qualidade e formação para potencializar seus usos. Faço esse destaque porque o estudo coordenado por mim e pela professora Sanny S. da Rosa, intitulado Políticas e Estratégias dos Sistemas Municipais de Ensino do Grande ABC Durante a Pandemia de Covid-19, cujos dados estão divulgados no site da USCS, mostra que os principais desafios enfrentados por professores e gestores escolares envolvem: acesso a equipamentos e ferramentas digitais, sinal de internet de boa qualidade (por parte dos próprios educadores e dos estudantes) e formação para que possam utilizar as tecnologias. Sendo assim, só podemos esperar a incorporação de certas experiências envolvendo o uso de tecnologias digitais para o futuro se esses problemas objetivos forem considerados e resolvidos. Reafirmo isso porque, em nosso estudo, os educadores declaram muita preocupação com os estudantes mais vulneráveis e que estão sem acesso às atividades escolares: bebês, crianças pequenas, crianças em fase de alfabetização, estudantes com deficiências, estudantes da Educação de Jovens e Adultos, especialmente aqueles que são empobrecidos e que fazem parte de recortes populacionais mais expostos a vulnerabilidades envolvendo renda, escolaridade, gênero e raça.
 
Será possível aproveitar alguma coisa deste cenário e o modelo imposto pelo isolamento?
 
Desde que cuidemos desses aspectos estruturais, penso que há algumas possibilidades, como a realização de reuniões pedagógicas e eventos de formação continuada de professores realizados remotamente, que vêm sendo avaliados positivamente por parte considerável dos educadores. Além disso, as tecnologias digitais de informação e comunicação  podem ser usadas para estreitar as relações das escolas com as comunidades e famílias (desde que possam acessar tais tecnologias, obviamente), realizar reuniões de pais e mestres e criar mecanismos de participação na gestão das escolas, com vistas à sua democratização. Quanto às práticas de ensino, penso que a incorporação de outras linguagens às aulas, como o uso de vídeos, aplicativos e materiais digitais podem contribuir para que professores e estudantes estejam mais conectados.
 
O jeito de ensinar mudou ao longo dos anos e tem evoluído com a tecnologia. O isolamento apressa essas mudanças?
 
Apressa para as camadas privilegiadas da população. Para a grande maioria empobrecida o efeito é contrário e a desigualdade aumenta.
 
Em contrapartida, o que esse cenário pode provocar de negativo na educação? Quais as consequências?
 
É difícil separar o que é negativo e o que é positivo. É arriscado ter esse olhar dualista, dicotômico. Todos estão sendo prejudicados pela falta das aulas presenciais. Isso é um fato. Do ponto de vista das aprendizagens em todos os níveis, cognitivo, afetivo, motor. Mas sem dúvida, os estudantes mais pobres são os que estão arcando com a pior parte do distanciamento físico: a negação do direito à educação.
 
Será possível para esses alunos retornar ao patamar anterior com facilidade?
 
Não é possível e não será fácil, porque não poderemos pensar em uma retomada das aulas de onde paramos. Precisamos assumir o compromisso ético de acompanhar e monitorar os percursos de aprendizagem de todos os estudantes dessa geração, durante todo o seu trajeto de escolarização. E para isso há alguns aspectos que precisam ser devidamente cuidados, como a retomada segura, do ponto de vista da saúde coletiva e dos programas de imunização de toda a população contra a Covid-19; planejamento e desenvolvimento de programas de suplemento e complemento na aprendizagem dos estudantes, considerando suas necessidades e características; suporte psicológico para todos (a demanda envolvendo saúde emocional cresceu vertiginosamente durante a pandemia); ações de busca ativa e chamamento público para combater a evasão e o abandono escolar (cujas medições precisam ser feitas e analisadas pelo poder público); ações intersetoriais envolvendo educação, saúde e assistência social; programas de fortalecimento da relação com famílias, comunidades e territórios; formação continuada de educadores (professores, gestores, trabalhadores do apoio escolar etc) centrada nas escolas e com base em diagnósticos; programas de ampliação e uso de tecnologias digitais de informação e comunicação; projetos de avaliação da aprendizagem dos estudantes; planejamento de ações e programas comprometidos com a carga horária mínima destinada à escolarização; revisão de currículos e programas, considerando as experiências, vivências e desafios forjados na pandemia.
 
Na sua opinião, poderíamos ter adotado um modelo diferente de ensino durante o isolamento?
 
Acredito que sim. Em primeiro lugar, em relação à educação, poderíamos ter criado ações mais eficientes se tivéssemos agido rapidamente na coleta de informações junto à população, para tomar decisões envolvendo a escolarização. Penso que se tivéssemos criado estratégias mais heterogêneas no que se refere à educação, a desigualdade e a injustiça escolar não teriam aumentado tanto. Por exemplo, os meios de comunicação de massa, como emissoras de televisão, rádio, jornais e revistas, poderiam ter sido utilizados de forma mais direta para garantir que a informação chegasse a toda a população, como alternativas ao uso exclusivo de computadores e smartphones. Além disso, a elaboração de materiais didáticos impressos, com começo, meio e fim, com conteúdos mais enxutos, no lugar do envio de atividades avulsas, muitas vezes desconectadas entre si, poderia ter ajudado a garantir o contato de uma maior quantidade de estudantes com o conteúdo escolar. O problema é que o segmento mais privilegiado da sociedade brasileira tem dificuldade de enxergar e de abstrair a realidade, para além das suas próprias experiências. Isso leva a supor que todos os brasileiros e brasileiras têm acesso a computadores, celulares e internet. Isso, definitivamente, não é verdade.
 
 
 



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