Espelho, espelho meu

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Daniela Pegorano

Padrões impostos pela sociedade são as principais causas de transtornos alimentares; se libertar dessas amarras e criar autoestima  são as armas para combater esse mal

No decorrer das décadas, a relação do indivíduo com o próprio corpo enfrentou grandes mudanças. Antes, o considerado padrão corporal era ditado por tradições comportamentais e religiosas. Hoje, é imposto pela mídia, publicidade e cinema. E esses ‘moldes’ estão em todos os lugares: nas passarelas, capas de revistas e programações televisivas. “A aparência se tornou importante desde o século 19 com o crescimento das cidades, onde seu corpo se torna sua carta de apresentação”, explica a historiadora Denise Bernuzzi, autora de livros que estudam a fundo o tema, entre eles História da Beleza no Brasil. Por isso, nunca estar feliz com o próprio corpo passou a ser algo corriqueiro. Não à toa, surgem a cada dia novas dietas milagrosas, maiores assinaturas em redes de academia e a recorrência a procedimentos estéticos e cirurgias plásticas. “Essa obsessão pelo corpo afeta a sociedade como um todo, causa a insatisfação e até mesmo doenças modernas, como os transtornos alimentares”, acrescenta a professora do departamento de antropologia da Unesp, Ana Lúcia de Castro. 

Quando olhar para o espelho se torna extremamente doloroso e a urgência de conseguir alcançar o padrão corporal ideal se faz tamanha a ponto de não medir esforços para alcançá-lo, a situação fica patológica. “A verdade é que eu odiava minhas curvas, meu quadril largo, meus braços grossos, a estrutura grande, e então passei a tentar não comer. A única coisa que eu desejava era ser magra. Sonhava em ver meus ossos aparecendo sob a pele”, conta a jornalista Daiana Garbin, 35 anos.  Foi apenas há dois anos que decidiu ir ao psiquiatra, quando recebeu o diagnóstico de que sofria com transtorno alimentar não especificado, ou seja, tinha características da bulimia e anorexia, mas os sintomas não encaixavam  em nenhuma das doenças. 

Os distúrbios alimentares podem ser apresentados em outras três classificações. Na anorexia, o indivíduo apresenta  restrição drástica de ingestão de alimentos, medo de ganhar peso e distorção na percepção corporal. A bulimia se caracteriza por episódios de compulsão alimentar seguidos de comportamentos compensatórios, como a indução de vômito, uso de laxantes, jejum ou excesso de exercícios. Existe ainda o  transtorno de compulsão alimentar, em que a pessoa  por episódios de ingestão exagerada de alimentos, em uma quantidade anormal, para suprir uma falta emocional. Diferentemente da bulimia, quem passa por isso não faz compensações. Por se tratarem de distúrbios mentais, muitas vezes estão acompanhados por outras patologias como ansiedade e depressão.

“Tentei emagrecer de todas as maneiras e nada funcionou. Eu passava a noite chorando. Só queria sair agradando, sabe? Não aguentava mais ficar assim, estava começando a me odiar”, conta a  estudante Fabiana* (nome foi trocado a pedido da entrevistada),  17 anos, que, na época, pesava 120 kg. Embora seja estigmatizado, o distúrbio alimentar acontece com indivíduos de diferentes pesos, idade e aparência. “Durante décadas ou durante um bom tempo, os transtornos alimentares eram tidos como doenças ligadas às questões psicológicas e sociais. Nos últimos anos temos descobertas nas áreas da genética e bioquímica e o que a gente pode ver é que os transtornos alimentares são um quadro com uma causa multifatorial, inclusive genética, alterações neuroquímicas cerebrais, dinâmica familiar e dinâmica social", explica o psiquiatra Táki Cordás.  

Fabiana convive com anorexia e bulimia há cerca de um ano, e esses transtornos, em muitos dos casos, chegam até mesmo a serem tratados de maneira personificada, ganhando apelidos de Ana e Mia, como é encontrado em blogs na internet de maneira a camuflar o tema tratado. “Sei que para muitos é uma doença, e realmente é. Mas  não considero elas assim, as tenho como amigas. Elas ajudam realmente a conseguir o que eu quero. Não vou abandonar a Ana, porque, se for para morrer, que pelo menos eu morra magra.”

Segundo o psiquiatra, essa percepção faz parte dos sintomas de quem sofre com o distúrbio.  “Essa é uma das características da doença. A negação dos riscos, a falta de reconhecimento e o entendimento de que isso faz parte de algo bom,  que deve ser mantido”. O especialista acrescenta que identificar o distúrbio pode ser difícil. “É uma doença que o paciente tenta ocultar ao máximo e ele tenta minimizar. Quando começa a perceber alguma coisa, o paciente negocia, acha que a família está exagerando, o médico. É importante lembrar que hoje muitos jovens estão fazendo dieta. Em uma mesma classe, muita gente pode estar fazendo dieta, o que dificulta a detecção do caso no meio daquele grupo.” 

A própria Fabiana foi exemplo disso. Teve repentino emagrecimento por conta da doença, mas sempre escondeu que essa extrema perda de peso estava relacionada aos transtornos.  “Consigo passar cinco dias tranquilos sem comer, fingindo que me alimentei. Mesmo quando eu estava emagrecendo muito rápido, minha mãe não percebeu. Ela começou a estranhar, chegou a suspeitar de  anorexia,  mas neguei totalmente os fatos”, relembra. De acordo com Cordás, que também é coordenador do Ambulim (Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), é preciso tomar cuidado para não culpabilizar a família, mas sim orientá-la, pois a ajuda familiar no tratamento é fundamental. 

Mas há sempre luz no fim do túnel. O tratamento varia de caso em caso e quem procura por ajuda normalmente conta com uma equipe multidisciplinar para cuidar de diferentes áreas que o transtorno alimentar afeta. Pode envolver profissionais como psiquiatras, psicólogos, nutricionistas, terapeutas, educadores e até mesmo enfermeiros. “Já melhorei muito desde que comecei. A cura total, quando se fala em transtornos mentais, é difícil. Existe uma administração da doença” explica a jornalista Daiana Garbin. Em fase de superar a doença, ela decidiu focar em sua profissão apenas para a divulgação dos transtornos. Lançou  livro em 2017, o Fazendo as Pazes com o Corpo, e mantém canal no YouTube, EuVejo, com vídeos de conversas e entrevistas sobre o tema. “Decidi falar sobre essa dor, que é ignorada. A gente só pode procurar ajuda e tratamento por uma doença que sabe que existe”, comenta.

E, de fato, a disseminação de informações sobre a patologia tem ajudado na questão da conscientização, como aponta Cordás. “Quando a gente começou o tratamento no Ambulim, há 25 anos, o assunto era pouco divulgado. Recebíamos um paciente a cada 15 dias. Hoje, temos de limitar triagem, porque tem uma fila grande de atendimento, cerca de cinco pessoas por semana. É possível que as questões ligadas ao corpo e ao uso de substâncias e buscas de emagrecimento possam de alguma maneira aumentar um pouco a frequência, mas eu diria que esse aumento tão grande se refere à divulgação”, explica. 

Padrão inalcançável

A cultura do culto ao corpo se encontra tão enraizada na sociedade contemporânea que as referências de padrões de beleza na mídia e redes sociais reforçam a ideia de que é necessário alcançar uma aparência ideal. Exemplo disso é a onda fitness em que se vive, a qual afirma todos os dias que o corpo desejado é possível de ser atingido, basta ter esforço. “É frequente que jovens exponham o corpo em redes sociais, mostrando que emagreceram, e recebam uma grande quantidade de ‘likes’. A maior parte da mídia e outros recursos de celulares reforçam o comportamento de dieta e de redução alimentar, quando não de doença”, explica Cordás. “A indústria da beleza faz a mulher esquecer que é um ser vivo, que nasceu com uma estrutura óssea e muscular diferente da dos outros, que cada corpo tem formato e tamanho únicos, e que exatamente por isso não podemos compará-lo aos outros. Quem disse que existem corpos certos e errados? Quem disse que é errado ter celulite e estria?”, comenta Daiana.

A palavra padrão, em suma, é usada para designar uma regra, algo a ser seguido. Em  análise social e biológica, as referências de beleza e aparência ideal que nos são apresentadas rotineiramente são inalcançáveis para grande parte da população. O dito padrão é, na realidade, uma minoria. “A gente tem uma diversidade de corpos que é impossível de ser enquadrada. A (boneca) Barbie, por exemplo, se aumentássemos ela para o tamanho real, as medidas corporais que ela possui seriam humanamente impossíveis de existirem. No entanto, ela é um modelo para muitas meninas”, conta a antropóloga Ana Lúcia de Castro. Embora exista o parâmetro hegemônico, aquele apresentado pela mídia e nas passarelas de moda, nas classes mais populares ele tende a mudar, visto que os padrões também estão relacionados a questões comportamentais. “Nessas classes, é valorizado o corpo mais rechonchudo, como se percebe em cantoras de funk. Ele se afasta um pouco do padrão ‘modelo’, mas ainda não chega ao obeso. Historicamente houve momentos em que se admitia formas mais avolumadas. A Marilyn, por exemplo, hoje seria considerada gorda”, acrescenta Ana Lúcia. 

Embora as redes sociais sejam usadas para afirmar os padrões corporais, um movimento contrário vem se expressando na internet, que busca expor a existência de diferentes corpos, sejam eles  gordos, magros, de coxas mais grossas, de seios menores. “Já teve uma época em que eu não entendia esse padrão. Teve outra em que tentei me encaixar nele, e hoje vivo o momento de não me importar com ele. Não foi fácil, até porque é muito difícil acreditar na própria beleza quando existe o mundo todo  contra você”, conta a jornalista Genize Ribeiro, 27. Negra e acima do peso dito ideal, acumula em sua conta do Instagram quase 8.000 seguidores, onde posta fotos em que mostra amor e carinho pelo próprio físico. “É o nosso corpo que nos dá a vida, é o nosso lar. É importante olhar para ele com cuidado. Se a mídia tradicional não nos representa, não nos retrata, a internet está aqui para isso”, acrescenta Genize. A aceitação e consciência de sua própria condição física são fatores determinantes para fugir das amarras da sociedade.

'Não dá mais, não dá para viver assim'

Após sofrer por quase 16 anos com transtornos alimentares, quem também aderiu ao movimento de aceitação do próprio corpo foi Mirian Bottan, 31. Com cerca de 670 mil seguidores no Instagram, é uma das grandes porta-vozes na questão de desconstrução e libertação dos padrões de beleza. Confira, a seguir, seu relato:   

“Comecei a fazer dieta aos 12 anos, foi quando desenvolvi a compulsão, justamente pela alimentação ser extremamente restritiva. Li uma reportagem que falava sobre bulimia e comecei a vomitar, porque achava que traria resultados rápidos. Desde o começo eu sabia que era um transtorno, mas achava que era algo que poderia parar quando quisesse. No entanto, a doença foi evoluindo. Já estava bastante doente, perdi cabelo, fiquei anêmica, sem menstruar por dois anos, desnutrida e até mesmo entrei em depressão. Tinha um comportamento que me fazia sentir prazer, o comer compulsivo, mas ao mesmo tempo me preocupava com a questão de emagrecer, o medo de engordar.

O primeiro tratamento dos distúrbios fiz quando tinha  15 anos, mas fui meio arrastada, porque meus pais descobriram a doença. Não queria me tratar porque achava que iria engordar, e eu não queria deixar de vomitar. Comecei tomando antidepressivos e isso ajudou, me deu ânimo para voltar a viver. Meus episódios purgativos de vômito diminuíram. Antes eram duas vezes por dia, e passaram a acontecer uma a cada dois dias. Por mais dez anos vivi dessa maneira.

Procurei ajuda de verdade mesmo aos 26, porque a questão se agravou em outros âmbitos. Quem tem compulsão alimentar normalmente tem outros tipos de compulsão, então eu tinha por álcool, por compras, por drogas na adolescência. Fazia tudo desesperadamente para me sentir feliz. Naquele ano, fiquei desempregada e passei a desenvolver alcoolismo, comecei a beber em casa pelo nervoso de não estar conseguindo emprego e voltei a vomitar mais vezes, como foi em minha adolescência. Certo dia bebi demais sozinha em casa e acordei no outro dia pensando: ‘Não dá mais, não dá para viver assim’.

Comecei a terapia com o analista que estou há cinco anos consultando. É um processo que não é fácil, e também não é rápido. O que acontecia era que focava muito da minha energia no meu corpo, acreditando que estar magra, cumprir essas pressões sociais com relação a estética eram algo muito importante, que eu tinha de lutar para alcançar com todas as minhas forças. Cerca de um ano depois procurei por ajuda nutricional, falei que queria cuidar da flacidez do meu corpo e me sentir mais resistente. Ela falou: ‘Então você vai ter que fazer musculação e você vai ter que comer bastante, porque se você não comer esse músculo não se forma’. Aceitei tentar. Comecei a treinar e meu corpo começou a mudar mesmo. Mas, como ainda não estava psicologicamente bem, tinha foco no corpo ideal, magro, do jeito que nossa cultura diz que é o certo. O treino e a alimentação viraram só outra ferramenta, além do vômito, para que eu buscasse uma magreza inatingível. Desenvolvi também a chamada ortorexia, um transtorno alimentar tão novo que ainda nem está catalogado, mas que vem acontecendo muito por conta da onda fitness. As pessoas começam a ficar muito obcecadas com a alimentação e a ter problemas na vida social e pessoal. Comecei a brigar com as pessoas em minha volta, brigava com meus pais se  fosse visitá-los e não tivesse o iogurte que eu queria comer, ficava muito nervosa se fosse em algum lugar e não tivesse a comida que eu queria. Quanto mais ele mudava, mais obcecada eu ficava com ele. Inventava defeitos e encontrava coisas que precisavam melhorar. 

Descobri uma linha nova de nutrição que é hoje a abordagem mais indicada para tratamento de distúrbios alimentares, que diz que a restrição causa a compulsão, e nunca antes tinha ouvido isso. Resolvi fazer um teste e de vez em quando comia hambúrguer, chocolate. Muitos sintomas que tinha desde a adolescência começaram a desaparecer. Sonhava muito com comida, e isso foi sumindo. Pensava o tempo inteiro em comer, tinha muita  compulsão e isso foi passando. Esse processo durou um ano inteiro. Foi inevitável pensar sobre meu corpo, porque se iria voltar a comer alimentos calóricos, meu corpo iria mudar. Foi um assunto que levei para a terapia, um processo de entender que a gente é mais que a aparência, existem outras coisas na vida que são mais importantes. Comecei a estudar sobre o feminismo, sobre o corpo da mulher ser uma coisa tão pública, que todo mundo fala, faz críticas. 

Nada vem só de um lugar, como é uma doença multifatorial, o tratamento e as respostas também acontecem em vários âmbitos da nossa vida. Somos influenciadas desde criança a achar que tem um tipo de corpo só que está certo. Isso junta com o nosso problema de autoestima, do fato de que até hoje a mulher não é incentivada a assumir cargos de poder, a ser ambiciosa. Descobri o movimento de aceitação corporal na internet, que começou com mulheres sobreviventes de transtornos alimentares, mulheres gordas ou que sofreram humilhações a vida inteira por conta do corpo. Precisamos começar a falar sobre o corpo da mulher e sobre essa obsessão, essa pressão estética que deixa a gente doente. 

Trouxe esse conteúdo para o meu Instagram. Meu trabalho ali surgiu da experiência com a bulimia, quando entendi que aquilo tudo era construído socialmente. Na verdade, o que estamos vivendo é uma desobjetificação da mulher, é falar: ‘Eu não preciso ter esse corpo, desse jeito, para ser considerada uma pessoa de valor’. Nossas conquistas precisam estar acima da aparência. A mulher pode ser escritora, cientista, mas se ela não for considerada bonita vai ser diminuída. Isso é algo primitivo que vivemos até hoje. Esse movimento nem é pela busca de se sentir bonita, é de resgatar a humanidade das mulheres, de reivindicar o direito de ser uma pessoa com outros objetivos na vida além de ser bonita. 

Todos os corpos são perfeitos, não são meramente um objeto decorativo. É um movimento que talvez a gente não veja resultados tão cedo, porque ainda há um caminho longo para se libertar dessas amarras. Por mais que estejamos debatendo isso agora, a gente ainda olha no espelho e não se sente o suficiente, mas acredito que essa conversa, com a potência que está agora, não vai regredir.”

QUAIS AS CAUSAS DE UM TRANSTORNO ALIMENTAR?

Não existe apenas uma causa específica, é algo multifatorial.

Fatores genéticos: Estudos indicam maior prevalência de distúrbios alimentares em algumas famílias, o que sugere um modelo de transmissão genético.

Fatores biológicos: Alterações de neurotransmissores moduladores da fome e da saciedade como a noradrenalina, serotonina, colecistoquinina e a dopamina têm sido consideradas fatores pré-disponentes para a doença. 

Fatores socioculturais: A obsessão por um corpo magro e perfeito é reforçada na rotina, vista como elemento desencadeante de insatisfação e de atitudes alimentares inadequadas em adolescentes e adultos jovens. 

Fatores familiares: Os pacientes geralmente apresentam conflitos interfamiliares, dificuldade de comunicação entre os parentes e interações tempestuosas e conflitantes. 

Fatores psicológicos: Há  características comuns entre os pacientes, como perfeccionismo, baixa autoestima, distorções cognitivas, rigidez comportamental, necessidade de manter total controle e falta de confiança.




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