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Marcela Munhoz
Distrofia de cones e bastonetes. Este foi o diagnóstico que Mellina Hernandes Reis recebeu aos 14 anos, quando começou a perder a visão central (responsável pelo foco). Há sete anos a doença se agravou com o surgimento da catarata. Foi quando ela, hoje com 34, começou a passar pelo processo de aceitação da condição de deficiente visual e aumentou os treinos com a bengala. Seu objetivo sempre foi ter um cão-guia. “Sabia que se não tivesse mobilidade e aprendesse a me locomover, não conseguiria.”
Em 2014, a Hilary finalmente chegou por meio do Projeto Cão-Guia do Sesi São Paulo em parceria com o Instituto Iris, uma organização sem fins lucrativos. “Ela mudou completamente a minha vida. Trouxe independência, autonomia e elevou minha autoestima.” A labradora preta tinha 2 anos e 8 meses quando foi recrutada a tornar a rotina de Mellina mais fácil. Geralmente, dependendo da instituição, antes de chegar ao dono, o cão-guia convive com família socializadora por um ano, em média. Essas pessoas são responsáveis por apresentar o mundo ao cão, como deve se comportar nos lugares. Após um ano, volta ao canil para aprender a ser guia e a usar o equipamento. Esse segundo processo dura em torno de oito meses.
Para ter direito a um cão-guia no Brasil, o deficiente precisa fazer cadastro em uma das instituições brasileiras que trabalham com isso. Como tem pouco cão para muita gente, pode demorar. Mellina precisou esperar quatro anos. Caso a pessoa é chamada, participa de entrevista quando é questionada sobre tudo, incluindo como é a rotina, o estilo de vida – é até filmada caminhando para saber o ritmo – e a renda, já que o animal é doado, mas as despesas depois da adoção são por conta do novo dono. “No início, confesso, foi difícil. É complicado confiar em um cachorro, achar que ele vai levar para o lugar certo, desviar das coisas. Mas é incrível a inteligência e a fidelidade deles. A Hilary é como se fosse minha filha, é amor infinito, incondicional. É minha vida.”
Mellina e Hilary formam dupla imbatível em terra, água e ar. Graduada em Turismo, Mellina criou, no ano de 2016, o blog Quatro Patas pelo Mundo (www.4pataspelomundo.com) com os objetivos de trabalhar com o que sempre gostou, mas também para motivar e informar as pessoas. “Depois de precisar, percebi que o turismo não está preparado para receber quem tem deficiência, ainda mais quem precisa de cão-guia. Não tem conversa, é lei. Todos os estabelecimentos e transportes são obrigados a aceitar e a receber os animais”, explica a turismóloga, que acrescenta: “Viajar com um cão guia é diferente de viajar com um pet. “Não gosto de usar essa palavra, mas eles são nossa ferramenta de trabalho. São os nossos olhos e precisamos deles em todos os lugares”. Tanto que não vão em gaiolas, bagageiros ou porões. Viajam nos pés dos donos ou em poltronas ao lado.
Para viajar com animal de ônibus ou avião, por exemplo, é preciso apresentar documentos, como o de vacinação atualizada, a carteirinha específica do cão-guia e, para viagens internacionais, o CZI (Certificado Zoosanitário Internacional), solicitado ao Ministério da Agricultura com atestado de médico veterinário. Mas nem sempre as portas estão abertas. Mellina e Hilary já enfrentaram problemas em alguns lugares, especialmente na volta do Chile, tanto que, depois disso, Hilary ganhou passaporte, que vai facilitar para uma próxima viagem pela América do Sul. “Mandaram ela colocar focinheira, o que é proibido. Foi um grande estresse. Em compensação, nos Estados Unidos não tive nenhum problema.” Em relação aos hotéis, Mellina conta que muitos dizem que não sabem da lei e precisam se virar para recebê-las. “Geralmente nem aviso, para não darem os quartos piores por causa do cão”, revela.
Tirando esses percalços, a blogueira garante que viajar com a cadela-guia é experiência incrível e que ela se diverte muito. “É importante que a Hilary tenha momentos de lazer, carinho e descanso. Antes de ser um cão-guia é um cachorro. Ela adora correr, nadar e brincar, então, todas as oportunidades que tenho para que seja um cachorro, faço questão”, afirma Mellina, que gosta de ressaltar mais uma coisa: “Quando o cão-guia está usando o arreio (equipamento que ajuda a guiar) é importante que as pessoas não mexam com ele porque, simplesmente, não pode se distrair. Eu dependo 100% da Hilary”.
O que diz a lei 11.126 de 27 de junho de 2005
É assegurado a` pessoa com deficiência visual acompanhada de cão-guia o direito de ingressar e de permanecer com o animal em todos os meios de transporte e em estabelecimentos abertos ao público, de uso público e privados de uso coletivo, desde que observadas as condições impostas por esta lei.
Aplica-se a todas as modalidades e jurisdições do serviço de transporte coletivo de passageiros, inclusive em esfera internacional com origem no território brasileiro.
Constitui ato de discriminação, a ser apenado com interdição e multa, qualquer tentativa voltada a impedir ou dificultar o gozo do direito previsto.
* Há também um projeto de lei do Senado (411/2015) que visa alterar a lei do cão-guia para estender aos portadores de outras deficiências o direito de se fazer acompanhar do cão de assistência em veículos e estabelecimentos de uso coletivo. O texto está em análise.
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