Não é só mais um Silva

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Marcela Munhoz

Aos 30, Ícaro se diz mais 'pragmático' do que aos 9, mas o sorriso ... ah, esse ainda é o mesmo

Filho de nordestinos, aos 8, ele, a irmã e os pais perderam a casa após enchente castigar favela onde morava em Diadema. Passou por vários momentos de violência – como a bala perdida que atingiu a mãe dentro de casa – foi alvo, muitas vezes, de preconceito. Mas no lar de Ícaro Silva nunca faltaram livros e amor. O garotinho superinteligente e sorridente – que, em 1995, deu entrevista ao Diário quando publicou seus três livros ainda criança (registro abaixo) – sempre teve os sonhos incansavelmente bombeados, especialmente, pela mãe, Dona Jô.

“Admito que aquele menino da reportagem era mais sonhador do que eu. Hoje, após encontrar toda a burocracia da vida adulta, me vejo bem mais calculista. Nunca deixei de sonhar, mas agora corro atrás de forma consciente. Sei qual é meu posicionamento no mundo e o peso das minhas escolhas profissionais”, conta à Dia-a-Dia, o ator que nasceu em São Bernardo, mas viveu por muito tempo na periferia de Diadema. E, daquela época, gosta de guardar na memória apenas os bons momentos. “Quando se passa por muitas transformações, olhar para trás não é uma boa ideia. Tenho orgulho, mas tudo já mudou muito. O que eu preciso desse passado está em mim: a simplicidade e olhar de verdade para o outro.”

Do passado, Ícaro também traz os ensinamentos dos pais, o companheirismo da irmã, a criatividade e a espontaneidade da infância. “Meu pai é muito correto, rígido até. Não foi extremamente carinhoso, mas me ensinou os princípios éticos. Ele sempre foi a razão. Minha mãe, por outro lado, é totalmente paixão. Foi quem alimentou meus sonhos, nunca desistiu. Fico pensando na dificuldade de uma mulher negra, da periferia, que conseguiu chamar o jornal, a televisão, porque tinha um filho que precisava de apoio. Ela me ensinou a acreditar em mim mesmo. E minha irmã (Martha mora na Alemanha) também é mais prática, então, tento enchê-la de leveza e amor”, se declara.

O artista se diz muito sortudo por tudo o que teve. “Minha mãe sempre me protegeu, dificilmente ficava na rua. Me ensinou também a filtrar o preconceito, ranço da sociedade brasileira. Sempre fui um pouco político, me sinto ativo, uma célula viva. Acredito que tem a ver com a minha criação sim”, analisa o ator, que reflete sobre a quantidade de ‘Ícaros Silvas’ que ainda moram nas comunidades do Grande ABC. “Quantos não são as meninas e meninos talentosos, que conseguem filtrar as referências que têm do mundo e transformar em arte? Muitos, infelizmente, acabam se perdendo no caminho, porque vivemos em um País muito desigual. O vão social é grande e estúpido. É preciso dar voz e oportunidades a eles sempre.”

Uma das saídas, segundo o são-bernardense, é a Educação. “Minhas portas de entrada para o mundo, basicamente, foram os livros (o pai trabalhava em uma biblioteca e levava obras para casa). Eles me deram percepção vasta. Tão vasta, que chega a ser infinita. Ter tido contato com as palavras desde cedo foi essencial, me ajudou muito. Por isso, acho incrível que o Diarinho (suplemento infantil do Diário) ainda exista”. Sobre a responsabilidade de ter a chance de educar, Ícaro é um entusiasta. “Tenho muita vontade de ser pai. Meu afilhado, Antônio, de quase 3 anos (filho do ator Igor Rickli e da cantora Aline Wirley), é o amor da minha vida. Toda vez que o vejo, renasço. Fico tentando transformá-lo em cidadão potente, generoso, com possibilidade de transformar. As crianças são o futuro. Quando estudei a vida do Michael Jackson para o quadro do Faustão tive a certeza do quanto ele era especial, porque ele também acreditava nisso”. Para o ator, a nova geração tem uma grande vantagem. “A galera de hoje conta com o poder de comunicação. Embora, tenhamos acesso aos fatos ruins, conseguimos também ouvir vozes que vêm de lugares inesperados, que nos trazem mensagens positivas e de superação. A noção de que somos um todo está mais forte. E é isso mesmo: precisamos caminhar juntos.”

É SÓ O COMEÇO

Beyoncé, Ivete Sangalo, Alexandre Pires, Bob Marley, Ney Matogrosso e Michael Jackson são grandes personalidades da arte, cada um com características marcantes. Imagina ter a chance de interpretá-los em um dos programas de maior audiência do canal brasileiro mais visto. Ícaro Silva encarou o desafio e venceu o até então inédito Show dos Famosos, do Domingão do Faustão. A cada apresentação, chuva de comentários, a maioria elogios. Todo mundo queria saber quem era aquele ‘homão da porra’, um dos termos usados para falar sobre o são-bernardense.

“Foi um privilégio fazer teatro na televisão. Essa coisa do ao vivo causa potência, impacto, encanta. Acho que consegui, com as figuras que escolhi, chegar no povo, porque dialogam com todos os tipos de pessoas. Cada um tem um valor muito específico”, analisa. “O mais emocionante, para mim, foi o Bob Marley. Além de interpretá-lo, pude me conectar à força ancestral negra. É genética cultural. Poder cantar Emancipate Yourselves from Mental Slavery (Libertem-se da escravidão mental), na canção Redemption Song, é algo extremamente forte.”

Beyoncé foi a mais difícil para Ícaro. “Foi bem trabalhoso, mas fiz questão de escolher uma mulher, assim como Ivete Sangalo, e também o Ney Matogrosso. Queria tocar no tema da androginia e não precisa ser trans, gay, hétero para falar sobre isso. Sempre que posso valorizo as mulheres, as coloco no topo. Filho de uma mulher negra, vi de perto o jeito errôneo, preconceituoso e machista que a sociedade se organiza. Tanto que uso saia, de vez em quando. Além de achar divertido, gosto de movimentar o tema, deixar claro a importância de a gente ser o que a gente é. Não sei porque há tanta luta contra o direito das pessoas serem quem são”.

Quem aplaudiu de pé as performances do ator no quadro do Domingão, porém, só está batendo palmas para a ponta de enorme iceberg de talento. Embora, o próprio Ícaro faça questão de dizer que está só começando. “O diretor André Paes Leme tem uma teoria que gosto muito. Ele diz que a carreira do ator só começa aos 30 anos, antes disso é só ralação. Vivo agora o início de um ciclo, no qual estou me afirmando como profissional das artes. Hoje posso dizer que as pessoas realmente acreditam nisso”, analisa Ícaro, que tem um grande desejo: “Que eu seja válido como artista, que seja a voz para quem não tem acesso à arte, ao entretenimento. Precisamos, especialmente neste momento (ele faz referência à situação política e econômica do Brasil e mundo) estar engajados e a arte tem grande papel.”

O ator começou na televisão na novela Meu Pé de Laranja Lima (1998), passou por Vidas Cruzadas (2000) e Pequena Travessa (2002), até encarar o personagem Rafa, em Malhação (2003 a 2007). Depois, entre outros trabalhos, participou do quadro Dança no Gelo, no Faustão (2007) e apresentou a TV Globlinho (2009). Integrou algumas minisséries e, em 2013, foi Arthur, em Jóia Rara. Hoje está no ar como Dilson, em Pega Pega, novela das 19h, da Globo. “O Dilson traz à tona os grandes encontros e desencontros da vida. Mexe bastante com a questão dos valores, da adoção, do abandono. Estamos gravando umas reviravoltas na vida dele”, adianta. O ator também pode ser visto na série Edifício Paraíso, do canal pago GNT, sobre cinco casais que moram no mesmo prédio. “Fábio é antipático para caramba, mas traz questões importantes do dia a dia que dialogam. E trabalhar com minha parceira Lucy Ramos é ótimo.”

Mas ainda é no palco que Ícaro deixou e deixa muita gente de queixo caído. Aliás, ele está experimentando a direção na peça Primeiro Sinal, em cartaz. “Ainda não me considero um diretor, tenho muito a aprender, mas quero sim exercer essa função também”. Entre as peças e musicais dos quais participou do elenco estão Garotos, Juventude Interrompida e Rock in Rio. Dois personagens reais, porém, são as verdadeiras obras-primas do ator: Wilson Simonal e Jair Rodrigues, tanto que recebeu indicações a prêmios com os papéis.

Com o primeiro, ficou em cartaz por dois anos (2014 a 2016) e ainda fez o Show em Simonal. Quem viu, garante que Ícaro era o próprio cantor, morto em 2000, encarnado. “Ele foi o primeiro e maior superstar do Brasil. Um verdadeiro showman, no máximo que o termo pode comportar. Simonal tinha relação poderosa com o público, enorme capacidade de adaptação, jogo de cintura. Falava com qualquer tipo de pessoa, de todas as classes”, derrete-se.

Os trejeitos de Jair Rodrigues também estão representados no trabalho do são-bernardense de forma impressionante. A primeira vez que interpretou o cantor – que nos deixou em 2014 – foi no musical Elis, de 2013 a 2016. Depois, em 2016, encarnou o personagem nos cinemas. Aliás, Ícaro Silva também se sente muito à vontade nas telonas. Ele esteve em Totalmente Inocentes (2012) e Sob Pressão (2016), que ganhou versão para minissérie na Globo, sem a escalação do ator. “Interpretar o Dr. Paulo foi um grande desafio, especialmente, por ser personagem dez anos mais velho. O laboratório foi intenso”.

E quem acha que tudo isso é mais do que o suficiente, pode esperar que vem muito por aí. “Não paro de trabalhar nunca, não me sinto bem de férias”, brinca. Ícaro – que pretende voltar aos palcos no segundo semestre: “Ainda não escolhi no que”, admite – está no filme Se a Vida Começasse Agora, sobre a história do Rock in Rio (sem previsão de estreia), e no aguardado Legalize Já, sobre a história da banda Planet Hemp (que deve chegar até o fim do ano).

Na trama, ele interpreta Skunk, um dos melhores amigos do Marcelo D2, que morreu em 1994. Ele era soropositivo. “Definitivamente o filme não é sobre maconha. É sobre transformação social, falar coisas que precisam ser ditas e salvar jovens. Skunk era vira-lata do conhecimento, independentemente da formação acadêmica, vai aprendendo com o mundo e, claro, com a arte”, diz Ícaro, que está nas alturas com o projeto. “Até já cantei com o Planet , me tornei amigo do D2. Marcelo é um cara de verdade, que não precisa esconder nada e, por isso, tem alcance muito forte.”

E para você, caro leitor, que está se perguntando como fica a carreira literária do autor de Três Historinhas de Ícaro Silva (1995), O Peixe Dourado (1996) e As Aventuras de Gera (1998), Ícaro tem a resposta: “Continuo escrevendo, porém sou autocrítico. As histórias precisam ser bem trabalhadas, é ofício de artesão. É que gosto das coisas bem construídas. As pessoas merecem o melhor de mim”. Alguém dúvida que a fila de autógrafos já está sendo formada?

 

 

 




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